segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Comentário sobre a HQ “Imagine Zumbis na Copa”


IMAGINE ZUMBIS NA COPA

Roteiro: Felipe Castilho
Arte: Tainan Rocha
Editora: GIBIZ 


SINOPSE: A copa do mundo chega à sua grande final. E é justamente durante este jogo decisivo que o fim da humanidade pode ter se iniciado. Por trás das câmeras e sobre o gramado, três pessoas enfrentam suas próprias batalhas, antes de perceberem que o maior pesadelo de uma nação pode não ser uma derrota em casa... e que nenhuma tragédia esportiva na história chegou ao nível do que está para acontecer dentro dos portões do Maracanã.


Quem me conhece sabe: não há nada que eu deteste mais no mundo do que futebol... Por motivos vários, mas para não me alongar aqui, afinal, essa não é a questão, digo apenas que nada tenho contra o esporte em si, mas não gosto do jogo, da competição, da torcida, do chororô, dos fogos, do pão e circo semanal. Jamais vou entender como alguém pode chorar pelo fim de um jogo, sendo o resultado positivo ou negativo. Vai entender... Talvez minha incompreensão se deva ao fato de eu mesmo não ser competitivo e não ter paciência com esse tipo de coisa; talvez ela se deva ao fato de eu me revoltar com a facilidade de as pessoas se deixarem distrair com um jogo... Mas enfim, como eu disse essa não é a questão.

O fato é que apesar de detestar futebol, algum tempo antes da fatídica Copa do Mundo, meu grande amigo Felipe Castilho me convidou para o lançamento de seu trabalho mais recente... Uma HQ, em parceria com Tainan Rocha que saiu pelo selo GIBIZ da Editora GIZ, e cujo tema era, nada mais, nada menos do que futebol. E zumbis, é claro.

Se fosse de outro autor, é claro que sequer cogitaria comprar (e quem dirá ler) a HQ, mas era do Felipe... Para ajudar, a HQ tem o sugestivo nome: Imagine Zumbis na Copa. Logo vi que iria rir muito (e estava certo), então deixei o preconceito de lado e li... Li de uma tacada só, pois o trabalho ficou bom demais e não foi possível parar! E ao terminar a leitura, fiquei feliz de não ter deixado minha birra com futebol me impedir de lê-la, pois, afinal, tudo o que li fez o maior sentido do mundo! Pois, na verdade, acho impossível alguém que não goste de futebol deixar de gostar de sua HQ! (espero que essa frase faça sentido). Mas falo sério! Eu ri muito lendo e me senti vingado também... Mas acho que quem gosta de futebol também vai gostar, é claro. E quem gosta de zumbis, é óbvio. Sobretudo, quem tem bom humor, quem gosta de uma ironiazinha ácida e bem feita, e, é claro, de quem gosta de desenhos estilosos e bem coloridos.

Brincadeiras à parte, a verdade é que adorei as críticas que o Felipe fez em seu roteiro, tanto as mais veladas, quanto as mais escrachadas. Achei genial o conflito de interesses que permeiam o texto, sobretudo, na personagem René (um menino haitiano pobre que cresce e se torna juiz – e acaba sendo contratado para apitar a final da Copa, no Brasil). Diga-se de passagem, René é a melhor personagem. Aliás, gostei muito da ponte que ele fez com o Haiti, mostrando a pobreza do país e como o futebol pode parecer para uma realidade assim (tal qual a de nossas favelas) um sonho e até um modo de vencer na vida, como acontece com René (e isso não é spoiler, pois fica claro logo no começo). Mas de volta à partida final, Felipe introduz o tema da corrupção, e com ele alguns questionamentos existenciais e muitas alfinetadas engraçadas que mesclam o humor com o tema sério. E esse conflito entre o que é certo e o que é errado quando tem gente passando fome e quando o aparentemente errado pode ser uma saída para se fazer o bem, deu um toque existencialista pra coisa que contrasta de modo bastante interessante com o humor geral que permeia o texto, mostrando que as coisas são bem mais do que parecem, e dando um chute na cara de todo mundo (inclusive na minha) que critica, muitas vezes, sem refletir as infinitas possibilidades (mas continuo sem gostar de futebol, que fique claro).

No pano de fundo há zumbis. E (um pequeno spoiler) o Felipe ainda banca o médium, prevendo a mordida entre jogadores que deu tanto o que falar na Copa da vida real. Se foi previsão, providência ou marketing, não sei dizer. Mas a vida imita a arte, não é mesmo? Futilidade está aí para provar.

Para além disso, achei bem legal como o Felipe conseguiu amarrar, em tão poucas páginas, vários núcleos (pois a história nem de longe se resume ao René)... Um dos núcleos mais legais é de um jogador veterano, ex-viciado, depressivo e esquecido, com conflitos existenciais. Novamente, os limites entre o certo e o errado, o bem e o mal se tornam muito tênues.

O final me pegou de surpresa, sobretudo, pelo epílogo estar meio escondido... Gostei das entrelinhas, e fiquei chocado quando pensei, no final, que uma certa personagem tinha morrido.

E em meio a tudo isso, há zumbis. Os zumbis estão lá, mas no fim, há muito além deles, não?

Porém, nem tudo são elogios, né? E quem me conhece sabe que se elogiei até aqui foi por ter gostado mesmo e ter lido com muito prazer... (não sou de criticar, prefiro comentar apenas quando gosto, se não tivesse gostado, simplesmente não comentava... fica a dica). Mas feito esse preâmbulo para introduzir minha única crítica, tenho de confessar, que achei o fim muito abrupto, e o epílogo um pouco confuso (ficou muita coisa subentendida). Mas talvez seja apenas porque não queria que a história acabasse... No final, eu me senti órfão, por acabar tão de repente. E no epílogo, pensei: “acho que deixei escapar algo”. Mas entendi depois, eu acho... Por outro lado, há algo de que gostei muito no epílogo, e não posso falar, pois é spoiler...

Quanto aos desenhos do Tainan, só digo que espero ver mais do trabalho dele. Os traços, as cores, tudo coube perfeitamente. O cara tem muito talento.

Por fim, não posso deixar de dizer que toda a referência ao Haiti me fez lembrar de imediato de um de meus livros preferidos: País sem Chapéu, de um haitiano radicado no Canadá chamado Danny Laferière (acho que já o mencionei em algum lugar aqui no blog, ou não. De toda forma, preciso escrever sobre ele um dia). É uma história semiautobiográfica (mas com direito a zumbis também, uma descida aos infernos dantesca e deuses da mitologia vudu) em que um jornalista, também radicado no Canadá e exilado do Haiti volta para a casa da mãe, vinte anos depois, e entra em conflitos existenciais ante a miséria do país, pós-ditadura e conflitos. É um livro muito bonito. No Brasil, saiu pela Editora 34 e ouvi dizer que a tradução está ótima. Foi inevitável fazer a ponte, diante de tantas coincidências entre o livro e a HQ, guardadas, é claro, as gritantes divergências.


Que venham mais trabalhos do Felipe e do Tainan.